Deus em tempos cibernéticos

 Deus em tempos cibernéticos

Numa dessas minhas idas a Santa Maria da Vitória, encontrei, certa noite, na Praça do Réptil ou Jardim dos Mallerossauros ou, para ser mais preciso, na Praça do Jacaré, com meu primo Adinil Neves de Sá, e levamos um longo papo. Ele, sempre muito criativo, há horas que aparece com cada uma que é só mesmo para a gente dar boas gaitadas.

– Primo, você sabia que Deus, hoje em dia, tá online, conectado?

– É mesmo, primo?

– E num é o quê? Antigamente, quando a gente fazia uma maldade, uma coisa errada, quem pagava eram os filhos, os netos, os binetos. Hoje, não, quando você faz uma coisa ruim, cê paga é logo. Tem essa, não, de pagar depois – e narrou um monte de histórias que confirmariam sua “tese”.

Fiquei, por um tempo com aquilo na cabeça, e passava adiante a história para meus amigos, mas apenas a mostrar o lado hilário e criativo do primo, sem dar muito importância para a possível conectividade divina. Por via das dúvidas, nem discordava nem aceitava, curtia, tão somente.

Dia desses, já em Salvador, numa conversa com um amigo, lhe perguntei se iria assistir a algum jogo das Olimpíadas, na Fonte Nova e, aproveitando, contei a ele, que se diz ateu, a “tese divina” do meu primo.

– Vou, sim, ora se vou. E já comprei até os ingressos, quatro. Paguei duzentos paus. Vamos eu, minha mulher e os meninos. Cinquenta reais cada ingresso. Num ia perder uma oportunidade dessa de jeito nenhum.

Fiz cara de assustado e levei avante nossa conversa:

– Comprei ontem à noite dois ingressos: um para a rodada dupla, Fiji e Coreia; México e Alemanha, e outro para o jogo Brasil e Dinamarca, e paguei duzentos contos. Não vi ingresso de cinquenta, só se for meia, para estudante.

– Isso mesmo. Eu e minha mulher pagamos meia. Uma coligada minha arrumou duas carteiras de estudante. Agora, somos estudantes – e sorriu.

– Fiquei triste. Não entendi – comentei e prossegui. – Logo você que bate pesado em corrupto, quer ver todos eles atrás das grades, entra numa dessa! Não acredito. Uma carteirinha, então, não é nada demais, coisa sem importância? – e parei, indignado.

Por um tempo, fiquei a matutar o ocorrido. Depois, procurei esquecer para não me chatear com o tão querido amigo. Afinal, não sou juiz nem palmatória do mundo, tampouco “paladino da moral e dos bons costumes”, entretanto, tais vantagens não me seduzem. Um dia, talvez, ele vai ver que nada disso vale a pena, tão somente propaga mau exemplo como se fosse coisa normal, sem consequência alguma.

Lembra-se daquela brincadeira do meu primo? De que Deus anda online? Pois é, parece que o castigo chegou foi cedo. Não é que, quando ele foi comprar os ingressos para o jogo mais esperado, Brasil x Dinamarca, acabou errando e comprou para outro jogo, México x Alemanha. Mas se conformou, afinal, são dois grandes times a se enfrentarem.

Chegou, finalmente, o dia do jogo, da rodada dupla, Fiji x Coreia e México x Alemanha, começando o primeiro às 17h e o segundo, às 19h, como li num site de notícias. Como eu estava interessado mais no segundo jogo, México x Alemanha, atrasei-me um pouco para o primeiro, questão de 10min. Entretanto, para surpresa minha, a partida que estava acontecendo era México x Alemanha e não Fiji x Coreia. Liguei imediatamente para meu amigo.

– Rapaz, vem logo, senão você só vai ver o segundo jogo, Fiji x Correia. O jornal da Internet informou errado – e finalizei.

Ele ficou uma fera. Disse que iria processar o site, um monte de coisa que se sabe que não vai fazer mesmo. Também, meu amigo já estava muito chateado porque comprou o ingresso para o jogo errado. Falei, argumentei e acabei por convencê-lo a vir para a Fonte Nova. Ele mora perto, o que facilita.

A primeira partida já havia acontecido. Foi um bom espetáculo. Estávamos no intervalo de uma hora entre um jogo e outro, quando ele e sua turma chegaram. Ensopados. E me contou o que aconteceu:

– Novais, inventei de vir de carro, enrolei seus colegas da Transalvador, passei pelo bloqueio, dizendo que ia pra casa, que morava no Engenho Velho de Brotas, pra tentar uma vaga em algum estacionamento por ali mesmo. Tava tudo cheio, marajá. Tive que ir pra Djalma Dutra, mais de um quilômetro de distância, botar o carro. E o pior: chovendo muito, todos nós molhamos. Tô preocupado é com resfriado! – e completou. – E o pior, meu menino não quis vir e eu tive que dar a zorra do ingresso a um amigo, pelo menos pra me fazer companhia, conversar sobre futebol. Me lasquei!

Começou a segunda partida, Fiji x Coreia. Jogo fraco, sem emoção. Meu amigo e sua turma começaram a sentir muito frio e a espirrar. Mal presságio. Ele, já bem desmotivado, virou-se para mim e sugeriu:

– Rapaz, vambora. Já começou tudo errado! Vambora logo pra não ficar pior – e saiu logo que terminou o primeiro tempo. Aliás, saímos! Procurei ser um pouco solidário, mesmo querendo ficar, para amenizar-lhe a raiva.

No outro dia, bem cedinho, encontrei-o, que foi logo relembrando a história do meu primo Adinil, aquela do “Deus conectado”, que havia lhe contado dias antes, tirando-lhe sorrisos irônicos.

– Rapaz, tá é todo mundo gripado lá em casa. Seu primo tem razão, Deus tá é conectado mesmo, tá onlainíssimo! Sabe o que foi que fiz com aquelas merdas de carteirinhas de estudante? Peguei elas, esbagacei e joguei no lixo de tanta raiva. E olha que foi a primeira vez que usei. Num vou esperar a segunda vez, não, marajá. Tô é fora disso!

*     *     *

Enviei, por e-mail, esta crônica para meu amigo, pedindo-lhe sua opinião e seu eu poderia publicá-la, sem que ele se sentisse ofendido.

Dias depois, encontrei-o na rua e lhe perguntei:

– E aí, figura, o que achou da minha “delação sem prêmio”?

– Gostei, sim, tá muito boa. Pode publicar, tem nada, não. Mas 90% dos brasileiros fazem isso – justificou-se, assim meio sem graça.

Não lhe disse mais nada, apenas lhe respondi mentalmente valendo-me do seu mesmo percentil: “esta é uma das razões porque 90% dos brasileiros têm os políticos que bem merecem”.

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