Antônio “Folclórico” Gusmão

 Antônio “Folclórico” Gusmão

Adinil Sá, Rogério do Sax, Antônio Gusmão, Sgt. Rosival Neves (Peixe) e Novais Neto. Acervo: Rogério do Sax.

Desde minha mais tenra idade, lembro-me daquele senhor moreno claro, estatura mediana, passos vagarosos, sorriso fácil, mas contido – jamais o vi gargalhar –, fala mansa, sibilante, sempre de chapéu, jeito bonachão, um tipo sem-par, excêntrico e original. Estou a caracterizar Antônio de Bento, digo melhor, Tõi de Bento, para meu pai e seus amigos de infância de nossa Santa Maria da Vitória. Para nós, mais novos, ficou conhecido mesmo como Antônio Gusmão, exímio e exigente musico, saxofonista gabaritado, da Philarmônica 6 de Outubro.

Adinil Sá, Rogério do Sax, Antônio Gusmão, Sgt. Rosival Neves (Peixe) e Novais Neto. Acervo: Rogério do Sax.

Seu Antônio sempre visitava meu pai em sua tenda de sapateiro, quando ainda era na Rua Benjamin Constant, em frente ao Colégio Padre Luiz Palmeira, atualmente, Universidade Aberta do Brasil (UAB), na sapataria de Nélson Neves. Depois, a tenda foi transferida para a Rua Teixeira de Freitas, onde fica a residência de meus pais. Tõi Gusmão, no entanto, nunca deixou de marcar presença, e eu gostava muito de ouvir, não o músico, mas suas criativas e absurdas histórias, às vezes, sem começo nem fim.

Meu conterrâneo santa-mariense contava suas aventureiras viagens Brasil afora e no Exterior. Dizia ter feito muitas tocatas em circos, casamentos, batizados, e tocado em filarmônicas de Goiânia e no Circo Orlando Orfei. Quanto à veracidade dessas histórias, não haveria de duvidar, até porque, categoria para tal ele tinha de sobra. O que, no entanto, nos deixavam atentos e até mesmo temerosos eram suas histórias de nego d’água ou caboclo d’água, de mãe-d’água, de lontras, durante suas pescarias.

Creio eu que meus pais gostavam muito de seus causos fascinantes, dos monstros aquáticos, a fim de nos segurar em casa e não irmos para o perigoso e igualmente belo Rio Corrente, hoje, infelizmente, nem tanto assim, devido à crudelidade humana.

Antônio Gusmão e Netinho de Nezo Pedreiro. Acervo: Netinho de Nezo.

São muitos os causos deixados na memória de meus amigos de infância contados por seu Antônio. Um dos mais imaginativos e geniais dá conta de uma pescaria, à noite, no Banheiro dos Homens, que ficava logo após o extinto Barquinho Clube, próximo ao antigo escritório do SAAE, no início do Alto da Lavandeira. Ele nos contava que, durante a pescaria, o relógio que trazia no pulso estava atrapalhando quando ele ia jogar a linha n’água. Pegou então o relógio o colocou num galho de uma árvore conhecida por madeira-nova, muito abundante na região, e continuou a pescar.

Terminado, por fim, seu lazer, arrumou as tralhas e foi embora para casa. Naquele dia, excepcionalmente, mais cedo, porque tinha passagem comprada para a capital paulista. Iria visitar a parentalha e amigos.

Ao chegar à outrora Terra da Garoa, deu-se conta de haver esquecido seu relógio Roskoph no galho da madeira-nova. E o que fazer agora? Como não tinha mesmo o que fazer, pois nem telefone havia na cidade, procurou esquecer o ocorrido, já que o prejuízo não era tão grande assim. Agostinho Relojoeiro, por certo, arranjaria outro para ele.

Pouco mais de dois anos depois, seu Antônio, amargurado e movido pela saudade infinda, voltou a Santa Maria de Vitória e nem se lembrou do tal relógio. Aliás, lembrou-se. E foi numa nova pescaria, quando lá estava no mesmo lugar com seu amigo, também pescador, Barraquinha. Recolheu, então, algumas lembranças perdidas na memória e não teve dúvida quanto à árvore, só que ela já estava bem frondosa, mas era ela, sim. Madeira-nova cresce rapidamente, ele sabia disso, por isso mesmo começou a olhar para cima, e nada viu. Resolveu então pôr o ouvido no tronco da árvore e escutou um remoto e quase inaudível tique-taque. Voltou a olhar para cima, desta vez com direção definida, e viu, num galho bem alto, seu Roskoph, com a pulseira bem esticada… E funcionando!

Seu Antônio contava todas estas histórias com uma sinceridade impressionante. Embora ele certamente soubesse que não estávamos acreditando em tudo, ele queria mesmo era contar, e o fazia com riqueza de detalhes e extrema sutileza. E parava, ficava sisudo, caso alguém se atrevesse a dizer que era mentira. A maioria dos meninos, como eu, queria era ouvir o que vinha da daquela mente criativa e que nos entretinha.

Em outra história, Tõi de Bento nos contou que, numa pescaria na Sambaíba, perto do Curtume de meu pai e do antigo Matadouro Municipal, o terrível Curral da Matança, já noite alta, quando lançou o anzol na água, a linha enganchou na pulseira do relógio, que abriu, e o jogou no rio. Como estava muito escuro e seria pouco provável encontrá-lo, desistiu da pescaria, sem antes deixar escrito na areia, dentro d’água, um indicativo exato do local: AQUI. No outro dia, de manhãzinha, voltou ao lugar e lá estava o que havia escrito. E bem legível. Só teve mesmo o trabalho de apanhar o relógio, colocá-lo no pulso e voltar para casa, feliz. Detalhe: o nome do rio é Corrente… E não é por acaso!

Um dos mais fabulosos causos contados por seu Antônio dá conta de uma pescaria que fez com Disson e Barraquinha, descendo o Rio Corrente de barco até o Morro do Domingão. Alta madrugada, quando, de repente, o barco estremeceu, quase os jogando n’água. E aí veio a surpresa maior. Era um monstro aquático com a bocarra aberta e certamente faminto. Barraquinha não teve dúvida, jogou uma melancia que trazia no barco e o monstrengo devorou. Logo depois, o bicho voltou a atacar e sobrou para quem? Justamente para Barraquinha, que caiu no rio e foi devorado, sem piedade.

Antônio Gusmão e Disson entraram em desespero. Rezaram para São Pedro, o santo protetor dos pescadores, apelaram até para as carrancas do Mestre Guarany, mas ninguém os socorreu. O mitológico ser, a cada vez que emergia, parecia mais esfomeado. Numa das vezes, Tõi de Bento atirou n’água um pequeno banco que trazia no paquete, logo engolido pelo faminto animal. Pronto. E agora, quem seria a próxima vítima?

Disson, que nunca havia atirado, lembrou-se do enferrujado clavinote, de Antônio Gusmão que estava dentro de um embornal e, mais que depressa, o apanhou. A esta altura, diante de morte iminente, seu Antônio, apavorado, caiu no rio e, quando tentava alcançar uma das margens, o bicho voltou a atacar e partiu furioso em sua direção. Disson, tremendo mais que vara verde, apontou a arma, apertou o gatilho e acertou, com a precisão de um atirador profissional, entre os olhos da fera, que boiou, inerte.

Os dois bravos pescadores decidiram, então, arrastar o monstruoso animal para a margem do rio, e ainda deram alguns tiros de misericórdia no bicho. Pegaram uma afiada peixeira e, ao abrir as entranhas da besta fera, eis o impensável, o surpreendente, um verdadeiro milagre: Barraquinha, na dele, sentado no banco a comer melancia! E assim, nosso herói, transformou-se no Jonas bíblico santa-mariense, aquele que teria ficado por três dias e três noites na barriga de um enorme peixe.

Mentira? Não! Jamais! São histórias, criações, causos contados por Tõi de Bento, nosso Antônio “Folclórico” Gusmão, para entreter, para provocar riso, nunca para enganar alguém ou deles beneficiar-se. Por isso, seus causos continuam vivos, como recordação indelével, na mente daqueles que tiveram o prazer de conhecê-lo. E ouvi-lo, sobretudo.

Antônio Gusmão, Rogério do Sax, Soldado Rosival Neves (Peixe) e Kleber Ninga.

Seu Antônio, no entanto, não deixou somente isso – suas histórias, seus causos –, ficaram músicos talentosos, discípulos seus, como Rogério do Sax (Ró de Pedrinho da Lancha Nancy), Cássio Murilo, Aldinho da Pro Bike, Kleber Barbosa (Kleber Ninga), Abílio Neto (Netinho de Nezo Pedreiro), dentre outros.

E mais ainda: os inimitáveis acordes do seu saxofone, ouvidos nas salas do Grupo Escolar Dr. José Borba, atualmente, Colégio Popular Rosa Magalhães, onde estudei no ano de 1969, quando fui aluno do 3º Ano Primário, da linda e meiga professora Eldy Suely Bueno, filha do médico Eliecin Bueno, são inolvidáveis, e presentes continuam.

P.S.: Agradecimento aos colegas e amigos Marcus Figueiredo e Cláudio Lima, por ficarem catando meus erros e minhas frases sem sentido nos meus escritos. Muito obrigado.

 

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